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quinta-feira, dezembro 23, 2004

o pão dos deuses




“No seu romance de ficção científica The Man in the High Castle, Philip K. Dick imaginou um mundo alternativo em que a Segunda Guerra Mundial foi vencida pelos japoneses e pelo Terceiro Reich. No mundo ficcional de Dick, as autoridades japonesas de ocupação introduziram e legalizaram a marijuana como uma das primeiras acções para pacificar a população da Califórnia. As coisas não são menos estranhas naquilo a que a inteligência comum se refere despreocupadamente como a “realidade”. Também em “este mundo” os vencedores introduziram uma droga omnipenetrante, ultra-poderosa e modeladora da sociedade. Foi esta a primeira de um grupo de drogas de alta tecnologia que colocam o utilizador numa realidade alternativa actuando directamente sobre os seus sentidos, sem a introdução de substâncias químicas no sistema nervoso. Era a televisão. Nenhuma epidemia, moda viciante ou histeria religiosa se propagou tão depressa ou converteu tanta gente em tão curto espaço de tempo.
A analogia mais próxima do poder viciante da televisão e da transformação de valores que ela trouxe à vida do utilizador contumaz é provavelmente a heroína. A heroína achata a imagem; com a heroína, as coisas não são quentes nem frias; o junkie olha o mundo certo de que, seja ele o que for, a sua importância é nula. A ilusão de conhecimento e de controle engendrados pela heroína é análoga à suposição inconsciente que o consumidor de televisão tem de que aquilo que ele está a ver é “real” algures no mundo. De facto, aquilo que se vê são as superfícies cosmeticamente melhoradas dos produtos. A televisão, ainda que quimicamente não invasora, é tão viciante e fisiologicamente prejudicial quanto qualquer outra droga:

De forma semelhante às drogas (…) a experiência televisiva permite ao participante apagar o mundo real e entrar num estado mental agradável e passivo. As preocupações e ansiedades da realidade são tão eficazmente afastadas ao absorvermo-nos num programa de televisão quanto ao entrarmos numa “viagem” induzida por drogas… E assim como os alcoólicos têm apenas uma vaga consciência do seu vício, achando que controlam a bebida mais do que realmente o fazem (…) do mesmo modo as pessoas sobrestimam o seu controle sobre o tempo passado a ver televisão. (…) Em última análise são os efeitos adversos causados pela televisão sobre a vida de tantas pessoas que a definem como um sério vício. O hábito de ver televisão distorce o sentido temporal. Torna as outras experiências vagas e curiosamente irreais enquanto assume para si própria uma realidade maior. Ela enfraquece os relacionamentos ao reduzir, e algumas vezes eliminar, as oportunidades normais para conversar, para comunicar.

O persuasor oculto

O mais perturbante de tudo isto é o seguinte: o conteúdo da televisão não é uma visão, mas sim um fluxo manufacturado de dados que podem ser sanitizados por forma a “protegerem” ou imporem valores culturais. Somos assim confrontados por uma droga viciante e totalmente envolvente que provoca uma experiência cuja mensagem é toda a mensagem que os seus controladores desejem passar. Existirá algo capaz de proporcionar um terreno mais fértil para estimular o fascismo e o totalitarismo do que isto? Nos Estados Unidos há muitos mais televisores do que lares, os televisores ficam ligados em média durante seis horas por dia, e a pessoa média vê mais de cinco horas de televisão por dia – quase um terço do seu tempo de vigília. Por mais conscientes que estejamos destes factos simples, parecemos incapazes de reagir às suas implicações. O estudo sério dos efeitos da televisão sobre a saúde e a cultura só começou recentemente. No entanto, nenhuma droga histórica isolou tão rápida e completamente toda a cultura dos seus utilizadores do contacto com a realidade. E nenhuma droga na história foi tão bem sucedida no refazer, à sua própria imagem, dos valores da cultura que ela infectou.
A televisão, pela sua natureza, é a droga dominadora por excelência. O controle do conteúdo, a uniformidade do conteúdo e a repetição do conteúdo tornaram-na um instrumento inevitável de coerção, lavagem cerebral e manipulação. A televisão induz no espectador um estado de transe que é a pré-condição necessária à lavagem cerebral. À semelhança de todas as outras drogas e tecnologias, o carácter básico da televisão não pode ser modificado; a televisão não é mais reformável do que a tecnologia produtora de espingardas automáticas de assalto.
Do ponto de vista da elite dominadora, a televisão surgiu precisamente no momento certo. Os quase 150 nos de epidemias de drogas sintéticas que tiveram início em 1806 haviam levado ao repúdio pelo espectáculo de degradação humana e canibalismo espiritual que a comercialização institucional de drogas criara. Do mesmo modo como – quando deixou de ser conveniente – a escravatura se tornou odiosa aos olhos das mesmas instituições que a haviam criado, o abuso de drogas acabou por desencadear uma reacção contra esta forma de particular de capitalismo pirata. As drogas duras foram ilegalizadas. Claro que floresceram então os mercados clandestinos. Mas as drogas enquanto instrumentos oficiais de política nacional haviam sido desacreditadas. Continuaria a haver guerras do ópio, instâncias de governos coagindo outros governos e povos a produzirem ou comprarem drogas – mas no futuro essas guerras seriam sujas e secretas, seriam “encobertas”.
Enquanto os serviços secretos surgidos na sequência da segunda guerra Mundial passavam a assumir as suas posições “não oficiais” como cérebros dos cartéis internacionais de drogas, o espírito popular virava-se para a televisão. Achatando, editando e simplificando a televisão fez o seu trabalho e criou no pós-guerra uma cultura do tipo Barbie-e-ken. Os filhos de Ken e Barbie afastaram-se fugazmente da intoxicação da TV em meados dos anos sessenta através do uso de alucinogénios. “Alto aí!”, reagiram os dominadores, que ilegalizaram rapidamente os psicadélicos e cancelaram todas as pesquisas. Uma dose dupla de terapia televisiva e cocaína foi prescrita para os hippies errantes, e rapidamente eles foram curados e transformados em yuppies orientados para o consumismo. Somente alguns poucos recalcitrantes escaparam a este nivelamento de valores. Quase todos aprenderam a amar o Big Brother. E estes poucos que assim não procedem continuam a escutar o cacarejo desaprovador da cultura dominadora de cada vez que esta debica compulsivamente o grão da sua perplexidade por relação a “aquilo que aconteceu nos anos sessenta”.”

Terence McKenna

Sugerido por m.ego