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domingo, dezembro 12, 2004

a que chamamos paz?

"Estou totalmente encantada por receber o Prémio da Paz de Sydney. Mas devo aceitá-lo como um prémio literário que honra uma escritora pelos seus escritos, porque ao contrário das muitas virtudes que me são falsamente atribuídas, não sou uma activista, nem a dirigente de algum movimento de massas, e não sou certamente a “voz dos sem voz”. (Sabemos, é claro, que não existe tal coisa como os “sem voz”. Há apenas os deliberadamente silenciados, ou os preferivelmente não ouvidos).

Sou uma escritora que não pode alegar representar outra coisa senão a si própria. Assim, mesmo que gostasse, seria presunçoso da minha parte dizer que aceito este prémio em nome daqueles que estão envolvidos na luta dos impotentes e dos desposados contra os poderosos. Posso, contudo, dizer que o aceito como a expressão da solidariedade da Fundação da Paz de Sydney com um certo tipo de política, uma certa visão do mundo, que milhões de nós em todo o mundo subscrevemos?

Pode parecer irónico que a uma pessoa que passa muito do seu tempo pensando em estratégias de resistência e conspirando para perturbar a paz aparente, lhe seja dado um prémio da paz. Lembrem-se que venho de um país essencialmente feudal – e há poucas coisas mais inquietantes do que uma paz feudal. Às vezes há verdade nos velhos clichés. Não pode haver paz verdadeira sem justiça. E sem resistência, não haverá justiça.

Actualmente, não é apenas a justiça em si, mas a própria ideia de justiça que está sob ataque. O assalto contra sectores frágeis e vulneráveis da sociedade é ao mesmo tempo tão completo, tão cruel e tão astuto – tudo abrangendo e contudo alvejando especificamente, descaradamente brutal e contudo inacreditavelmente insidioso – que o seu atrevimento absoluto corroeu a nossa definição de justiça. Forçou-nos a baixar os olhos e a diminuir as nossas expectativas. Mesmo entre os bem intencionados, o expansivo, magnífico conceito de justiça tem sido gradualmente substituído pelo reduzido e muito mais frágil discurso dos “direitos humanos”.

Se pensarmos bem, trata-se de uma mudança alarmante de paradigma. A diferença é que as noções de igualdade e de paridade têm sido esvaziadas e retiradas da equação. É um processo de atrito. Quase inconscientemente, começamos a pensar em justiça para os ricos e em direitos humanos para os pobres. Justiça para o mundo corporativo, direitos humanos para as suas vítimas. Justiça para os americanos, direitos humanos para afegãos e iraquianos. Justiça para as castas mais altas da Índia, direitos humanos para os dalits e adivasis (quando muito). Justiça para os australianos brancos, direitos humanos para os aborígenes e imigrantes (a maioria das vezes nem isso).

Está a ficar cada vez mais claro que a violação dos direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de implementação de uma estrutura política e económica coerciva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra os direitos humanos são mostradas como a falha infeliz, quase acidental, de um sistema político e económico que, de outro modo, é perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de atenção de parte de algumas organizações não governamentais.

É por isso que em áreas de grandes conflitos — na Caxemira e no Iraque, por exemplo — os profissionais de direitos humanos são vistos com um certo grau de suspeita. Muitos movimentos de resistência de países pobres, lutando contra grandes injustiças e questionando os princípios subterrâneos do que é chamado de “libertação” e “desenvolvimento”, vêem as organizações não governamentais de direitos humanos como missionários contemporâneos que vieram aparar as arestas mais feias do imperialismo. Para neutralizar a ira política e manter o status quo.

Foi apenas há algumas semanas que uma maioria de australianos votou para reeleger o primeiro-ministro John Howard que, entre outras coisas, conduziu a Austrália a participar da invasão e ocupação ilegais do Iraque. Essa invasão entrará seguramente para a história como uma das guerras mais covardes jamais travadas. Foi uma guerra na qual um bando de nações ricas, com armas nucleares suficientes para destruir o mundo inúmeras vezes, cercaram uma nação pobre, falsamente acusada de ter armas nucleares, usaram as Nações Unidas para forçar o seu desarmamento, invadiram-na, ocuparam-na e estão agora no processo de vendê-la.

Falo do Iraque, não porque toda a gente fala nisso, (tristemente a custo de deixar outros horrores noutros lugares desenrolando-se no escuro), mas porque é o sinal de coisas que estão por vir. O Iraque marca o início de um novo ciclo. Oferece-nos uma oportunidade de observar a conspiração corporativo-militar que passou a ser conhecida como o “Império” em acção. No novo Iraque, arregaça as mangas.

À medida que a batalha pelo controle dos recursos do mundo se intensifica, o colonialismo económico, por meio da agressão militar oficial, ensaia uma volta à cena. O Iraque é a culminação lógica do processo de globalização corporativa, no qual se fundiram o neocolonialismo e o neoliberalismo. Se pudéssemos espiar através de uma fresta da cortina de sangue, vislumbraríamos as impiedosas transacções que ocorrem nos bastidores.

Invadido e ocupado, o Iraque teve que pagar 200 milhões de dólares em “reparações” correspondentes a lucros perdidos por corporações como: Halliburton, Shell, Mobil, Nestlé, Pepsi, Kentucky Fried Chicken e Toys’R’Us. Isso sem contar os 125 mil milhões de dívida soberana que forçaram o país a voltar-se para o FMI, que o aguardava nas suas asas como o anjo da morte, com o seu programa de ajuste estrutural. (Embora, no Iraque, não pareçam restar muitas estruturas passíveis de ajustamento. Excepto a difusa Al Qaeda.)

No novo Iraque, a privatização desbastou terra virgem. O exército dos EUA recruta cada vez mais mercenários privados para ajudar na ocupação. A vantagem com os mercenários é que, quando morrem, não são incluídos na contagem de corpos dos soldados dos EUA. Ajuda a gerir a opinião pública, o que é particularmente importante num ano de eleições. As prisões foram privatizadas. A tortura foi privatizada. Vimos a que isso conduz. Outras atracções no novo Iraque incluem o encerramento de jornais. Estações de televisão bombardeadas. Jornalistas mortos. O único tipo de resistência que conseguiu sobreviver é tão demente e brutal como a própria ocupação. Há aí espaço para uma resistência secular, democrática, feminista, não-violenta no Iraque? Na verdade, não há.

É por isso que recai sobre aqueles de nós que vivem fora do Iraque a criação de uma resistência de massas, secular e não-violenta à ocupação dos EUA. Se falharmos em fazer isso, então corremos o risco de permitir que a ideia de resistência seja sequestrada e amalgamada com o terrorismo e isso seria uma pena porque não são a mesma coisa.

Assim, o que significa paz neste mundo selvagem, corporativizado e militarizado? O que significa paz num mundo onde um sistema entrincheirado de apropriação criou uma situação em que países pobres que têm sido pilhados por regimes colonizadores durante séculos estão afogados em dívidas aos mesmos países que os pilharam? E têm de repagar essa dívida a uma taxa de 382 milhares de milhões de dólares por ano?

O que significa paz num mundo em que a riqueza combinada dos 587 bilionários do mundo excede o produto interno bruto combinado dos 135 países mais pobres do mundo? Ou quando países ricos que pagam subsídios agrícolas de um milhar de milhão de dólares por dia tentam e forçam países pobres a abandonar os seus subsídios?

O que significa paz para as pessoas no Iraque, na Palestina, na Caxemira, no Tibete e na Chechénia ocupados? Ou para o povo aborígene da Austrália? Ou para os ogonis da Nigéria? Ou para os curdos na Turquia? Ou para os dalits e adivasis da Índia? O que significa paz para os que não são muçulmanos em países islâmicos, ou para as mulheres no Irão, na Arábia Saudita e no Afeganistão?

O que significa paz para os milhões de pessoas que estão a ser desarreigadas das suas terras para a construção de barragens e projectos de desenvolvimento?

O que significa paz para os pobres que estão a ser activamente roubados dos seus recursos e para quem a vida de todos os dias é uma batalha agreste por água, abrigo, sobrevivência e, acima de tudo, alguma semelhança com dignidade? Para eles, paz é guerra.

Sabemos perfeitamente quem beneficia com a guerra na era do Império. Mas precisamos também perguntar-nos quem beneficia da paz na era do Império? Negociar com a guerra é criminoso. Mas falar de paz sem falar de justiça poderia facilmente tornar-se a defesa de um certo tipo de capitulação. E falar de justiça sem desmascarar as instituições e os sistemas que perpetuam a injustiça é muito mais que hipocrisia.

É fácil culpar os pobres por serem pobres. É fácil acreditar que o mundo é vítima de uma espiral crescente de terrorismo e guerra. É isso que permite ao presidente norte-americano dizer: «Ou estão connosco ou estão com os terroristas». Mas nós sabemos que essa é uma escolha falsa. Sabemos que o terrorismo não é mais do que a privatização da guerra. Que os terroristas são os livres mercadores da guerra. Eles crêem que o uso legítimo da violência não é prerrogativa exclusiva do estado.

É mentiroso fazer uma distinção moral entre a indescritível brutalidade do terrorismo e a carnificina indiscriminada da guerra e da ocupação. Ambos os tipos de violência são inaceitáveis. Não podemos apoiar uma e condenar a outra.

A verdadeira tragédia é que a maioria das pessoas no mundo está encurralada entre o horror de uma paz aparente e o terror da guerra. Esses são os dois íngremes penhascos em que estamos encurralados. A questão é: como sair fora desta fenda profunda?

Para aqueles que estão materialmente prósperos, mas moralmente desconfortáveis, a primeira questão que devem fazer a si próprios é se querem realmente sair fora dela. Até onde estão preparados para ir? A fenda tornou-se confortável demais?

Se realmente quiserem sair fora, há boas e más notícias.
A boa notícia é que um grupo avançado começou a sair há algum tempo. Já está meio caminho acima. Milhares de activistas em todo o mundo trabalharam muito, preparando apoios para os pés e segurando as cordas para tornar a subida mais fácil para os restantes. Não há apenas um caminho de saída. Há centenas de vias para lá chegar. Há centenas de batalhas a serem travadas em todo o mundo que precisam das vossas capacidades, das vossas mentes, dos vossos recursos. Nenhuma batalha é irrelevante. Nenhuma vitória é demasiado pequena.
A má notícia é que demonstrações coloridas, marchas de fim-de-semana e viagens anuais ao Fórum Social Mundial não são suficientes. Têm de existir actos dirigidos de verdadeira desobediência civil, com reais consequências. Talvez não possamos accionar um interruptor e conjurar uma revolução. Mas há várias coisas que poderíamos fazer. Por exemplo, poderíamos fazer uma lista das corporações que lucraram com a invasão do Iraque. Poderiam nomeá-las, boicotá-las, ocupar os seus escritórios e forçá-los a abandonar o negócio. Se pode acontecer na Bolívia, pode acontecer na Índia. Pode acontecer na Austrália. Porque não?

Isso é apenas uma pequena sugestão. Mas lembrem-se que, se a luta resultasse em violência, perderia visão, beleza e imaginação. E mais perigoso que tudo, marginalizaria e eventualmente vitimaria as mulheres. E uma luta política que não tem as mulheres no seu cerne, acima, abaixo e por dentro não é luta nem é nada.

O ponto é que a batalha deve ser assumida. Como o maravilhoso historiador americano Howard Zinn afirmou: não podemos ser neutros num comboio em andamento."

Arundhati Roy

(Extraído da palestra feita pela escritora indiana ao receber o Prémio da Paz de Sidney 2004.)

sugerido por m.ego