革命的兒子 | γιος της | επανάστασης | сынок витка | 혁명의 아들 | 回転の息子

sexta-feira, dezembro 10, 2004

leviatã revisitado
ou a propósito de hobbes, não o do calvin mas o outro...



Todo o homem tem naturalmente direito a tudo! A jusnaturale ou o direito de natureza assim o afirma partindo do pressuposto da liberdade que cada homem possui para usar o seu próprio poder em função de defesa da sua natureza e consequentemente de realizar tudo ao seu alcance que a sua razão lhe indique como meios adequados a esse fim. Isto porque, Liberdade significa na sua essência ausência de oposição. Estas são algumas das premissas enunciadas em Leviatã. O que Thomas Hobbes propunha para o Homem, como indivíduo, no século XVII apenas se cumpre hoje pela via do Estado totalitário. Paradoxo inevitável: A liberdade do Estado reprime o Homem livre. Ao contrário, a afirmação do Homem livre ameaça a acção omnipresente do Estado.
Todos os dias, oferecem-nos a execução de um inimigo ferido, moribundo, confirmado pelo bombardeamento de mais uma cidade invicta como um acto de satisfatório desespero heróico e juntos assistimos entretidos – porque é de entretenimento que se trata quando ligamos essa caixinha de pandora que se denomina de televisão – ao fim dos Estados, substituídos pela aliança, unificadora e panegírica do Ocidente. Desígnio este futurista da ascensão de uma nação global de feições orwellianas, há muito prevista. Será através da guerra de auto-aniquilamento dos estados que emergirá a tal Federação globalizante de governo do planeta avançada em 1984? Sendo assim, assistiremos pávidos ao supremo ritual, ao último sacrifício, à celebração final pela humanidade do dia que Apollo levantou o braço de ferro e esmagou Adónis. Neste processo, a Ordem restabelece o caos para homologar um poder de acção dominante, por isso mesmo e necessariamente, culturalizante, narcisista e auto-erótica sobre o “Outro – auto-erótica no sentido que a perfeição está de um só lado e por isso só “Eu” te posso possuir e só “Eu” e mais ninguém tenho a capacidade de me satisfazer. Aqui, não se pretende reciprocidade cultural mas antes a projecção de uma cultura sobre o vizinho. É certo e sabido que a Ordem só se consegue a partir do caos e é do caos que se restabelecerá uma Nova Ordem! A própria Coco Chanel, que gostava de tomar chá no Quartier Latin com os oficiais nazis, durante a ocupação de Paris, não se cansava de cantar ao mundo a sua mais ditada máxima: “Para criar é preciso destruir!”. Conclui-se que as sociedades dominadoras são em si, essencialmente, narcisistas. Mas sobre este assunto, de Freud a Mancia tudo isto já foi suficientemente explicado.
Hobbes enuncia no culminar da sua obra, os perigos da ascensão do Reino das Trevas. O Reino de Satanás, a soberania de Belzebu sobre os demónios que aparecem no ar – qualquer semelhança aqui com as imagens de bombardeiros americanos a atacar alvos militares no Médio Oriente é pura coincidência - por cuja razão, também é aclamado de príncipe do poder do ar e porque governa neste mundo, o príncipe deste mundo. Os filhos das trevas, como as escrituras prevêem no Livro do Apocalipse, são governados por uma confederação de impostores, que para obterem o domínio sobre os homens neste mundo presente, tentam por meio de escuras e erróneas doutrinas, extinguir neles a luz. Este é o Reino dos baptismos de fogo, das figuras fantasmagóricas, o Reino das aparições. Ao vermos e ouvirmos os nossos líderes políticos compreendemos que estes são na sua essência fantasmas ou figuras fantasmagóricas. Aparições televisivas. Seres de energia difusa, de uma transparência opaca que nada revela. Como em Hobbes “ídolos ou fantasmas do cérebro, sem qualquer natureza real própria, distinta de fantasia humana”.
A salvação perante a cavalgada heróica de um Estado narcisista é a assunção de um narcisismo individual, humano, sentido, positivo. Ao “Eu” do Estado opõe-se o “Eu” do Indivíduo. A elevação do Homem singular. Continuarei vivo, sobreviverei, enquanto permanecer “Eu” em detrimento de ser como os “Outros”, confundido na multidão, cinzenta, sem cor, empalidecida pela opressão da sociedade. A maior vitória do Indivíduo - utilizando a nomenclatura hobbesiana - do Reino da luz sobre o das trevas, foi a própria conquista do ciberespaço. Um espaço que se caracteriza por estar fora de controle de qualquer poder regulador, legislativo, jurídico ou moral. A revolução das classes, do princípio do século XX e a revolução sexual, dos anos 60, deram lugar à revolução electrónica. Tal como os piratas de antigamente, o pirata informático transporta na navegação que imprime ao espaço cibernético (que é tal como os oceanos setecentistas um mar de livre circulação), o próprio valor anarquizante, fora de qualquer governo ou opressão externa, tornando-o real a partir de um mundo virtual na assunção que a afinal a última premissa avançada por Marx em o “Capital” é possível. Em fase de conclusão, recordemos a grande máxima anarco-política anunciada certa vez por John Cage no seu magnífico manifesto/poema musical “Overpopulation and Art”: “[...]de derrota em derrota venceremos!”. Porque a Liberdade assumida pelo Indivíduo de uma forma intrínseca - pela de via de uma cultura de ser e estar - é como um veneno de acção lenta que se injecta no sangue do inimigo de cada vez que se luta e que pela via da gangrena, apodrecer-lhe-á a carne até à morte.

Capitão de Malta

Bibliografia:

Hobbes, Thomas, Leviatã. Lisboa. INCM. 2002 (ed. orig. 1660).
Freud, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Livros do Brasil.
Mancia, Mauro. No olhar de Narciso. Ensaio sobre a memória, o afecto e a criatividade. Lisboa. Escher. 1990.
Lapouge, Gilles. Os Piratas. Lisboa. Antigona. 1998.
Orwell, Georges. Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Lisboa. Antigona. 1991.

Filmografia:

Overpopulation and Art: A Mesostic Poem – Spoken performance by John Cage. Real/Dir. Frank Sheffer e Andrew Culver. Musica: Ryoanji de John Cage. Mode Records and Allegri Films. 1995.

sugerido por Capitão de Malta