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sábado, dezembro 04, 2004

nós dizemos NÃO

Em Julho de 1988, em plena ditadura do general Pinochet, 300 intelectuais e artistas participaram no "Chile Cria", um encontro internacional de arte, ciência e cultura pela democracia no Chile. Este é o discurso de inauguração, que Eduardo Galeano pronunciou em nome de todos os convidados:

"Viemos de diversos países, e estamos aqui, reunidos à sombra generosa de Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo do Chile, que diz não. Nós também dizemos não.
Dizemos não ao elogio do dinheiro e da morte. Dizemos não a um sistema que põe preço nas coisas e nas pessoas, onde quem mais tem é quem mais vale; dizemos não a um mundo que destina dois milhões de dólares por minuto para as armas de guerra enquanto mata, por minuto, 30 crianças, de fome ou doença curável. A bomba de neutrões, que salva as coisas e aniquila as pessoas, é um perfeito símbolo do nosso tempo. Para o sistema assassino que converte em objectivos militares as estrelas da noite, o ser humano não é nada mais do que um factor de produção e consumo e objecto de uso; o tempo não é outra coisa para além de um recurso económico; e o planeta inteiro, uma fonte de renda que deve render até a última gota do seu caldo. A pobreza é multiplicada para que a riqueza se possa multiplicar, e multiplicam-se as armas que garantem essa riqueza, riqueza de pouquinhos, e que mantém à margem a pobreza de todos os outros, e também se multiplica, enquanto isso, a solidão: nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de abraços.
Dizemos não à mentira. A cultura dominante, que os grandes meios de comunicação irradiam em escala universal, convida-nos a confundir o mundo com um supermercado ou uma pista de corrida, onde o próximo pode ser uma mercadoria ou um competidor, mas jamais um irmão. Essa cultura mentirosa, que grotescamente especula com o amor humano para lhe arrancar mais-valia, é na realidade a cultura da desvinculação : tem por deuses os ganhadores, os exitosos donos do dinheiro e do poder, e por heróis os "Rambos" fardados que cuidam das suas costas aplicando a Doutrina da Segurança Nacional. Pelo que diz e pelo que cala, a cultura dominante mente que a pobreza dos pobres não é um resultado da riqueza dos ricos, mas que é filha de ninguém, vinda no bojo de uma couve-flor ou da vontade de Deus, que fez os pobres preguiçosos e burros. Da mesma maneira, a humilhação de alguns homens provocada por outros não tem por que motivar a solidária indignação ou o escândalo, porque pertence à ordem natural das coisas: as ditaduras latino-americanas, por exemplo, fazem parte da nossa exuberante natureza e não do sistema imperialista de poder.
O desprezo transforma a história e mutila o mundo. Os poderosos fabricantes de opinião tratam-nos como se não existíssemos, ou como se fôssemos sombras tontas. A herança colonial obriga o chamado Terceiro Mundo, habitado por pessoas de terceira categoria, a aceitar como própria a memória dos seus vencedores, e obriga-o a compor a mentira alheia para a usar como se fosse a própria verdade. Premeiam a nossa obediência, castigam a nossa inteligência e desalentam a nossa energia criadora. Somos opinados, mas não podemos ser opinadores. Temos direito ao eco, não à voz, e os que mandam elogiam o nosso talento de papagaios. Nós dizemos não: nós negamo-nos a aceitar esta mediocridade como destino.
Nós dizemos não ao medo. Não ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser. O colonialismo visível proíbe dizer, proíbe fazer, proíbe ser. O colonialismo invisível, mais eficaz, convence-nos de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. O medo disfarça-se de realismo: para que a realidade não seja irreal, dizem os ideólogos da impotência, a moral haverá de ser imoral. Frente à indignidade, frente à miséria, frente à mentira, não temos outro remédio para além da resignação. Marcados pela fatalidade, nascemos preguiçosos, irresponsáveis, violentos, bobos, pitorescos e condenados à tutela militar. No máximo, podemos aspirar a converter-nos em prisioneiros do bom comportamento, capazes de pagar pontualmente os interesses de uma descomunal dívida externa contraída para financiar o luxo que nos humilha e o bastão que nos golpeia.
E neste estado de coisas, nós dizemos não à neutralidade da palavra humana. Dizemos não aos que nos convidam a lavar as mãos perante as quotidianas crucificações que ocorrem ao nosso redor. À aborrecida fascinação de uma arte fria, indiferente, contempladora do espelho, preferimos uma arte quente, que celebra a aventura humana no mundo e nela participa, uma arte irremediavelmente apaixonada e briguenta. Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria justa a justiça, se não fosse bela? Nós dizemos não ao divórcio entre a beleza e a justiça, porque dizemos sim ao seu abraço poderoso e fecundo.
Acontece que nós dizemos não, e dizendo não estamos dizendo sim.
Dizendo não às ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a palavra, e que será bela e perigosa como um poema de Neruda ou uma canção de Violeta Parra.
Dizendo não ao devastador império da cobiça, que tem o seu centro no norte da América, nós estamos dizendo sim a outra América possível, que nascerá da mais antiga das tradições americanas, a tradição comunitária: a tradição comunitária que os índios do Chile defendem desesperadamente, de derrota em derrota, há cinco séculos.
Dizendo não à paz sem dignidade, nós estamos dizendo sim ao sagrado direito de rebelião contra a injustiça e contra a sua longa história, longa como a história da resistência popular no longo mapa do Chile.
Dizendo não à liberdade do dinheiro, nós estamos dizendo sim à liberdade das pessoas: liberdade maltratada e machucada, mil vezes derrubada, como o Chile e, como o Chile, mil vezes erguida.
Dizendo não ao egoísmo suicida dos poderosos, que converteram o mundo num vasto quartel, nós estamos dizendo sim à solidariedade humana, que nos dá sentido universal e confirma a força de fraternidades mais poderosas que todas as fronteiras com todos os seus guardiães: essa força que nos invade, como a música do Chile, e que como o vinho do Chile nos abraça.E dizendo não ao triste encanto do desencanto, nós estamos dizendo sim à esperança, à esperança faminta e louca e amante e amada, como o Chile: a esperança obstinada como os filhos do Chile rompendo a noite."


GALEANO, Eduardo, "Nós Dizemos Não",Editora Revan, Brasil, 1990.

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